Muitas vezes acreditamos que sofremos por algo que acabou de acontecer, mas a intensidade da dor mostra que há mais em jogo: quanto mais profunda a ferida, mais antiga é a sua raiz, e quanto mais antiga, mais estruturada ela se torna no psiquismo. Isso significa a soma de histórias não resolvidas, memórias guardadas e padrões que se repetem silenciosamente e que, por vezes, são passados de geração em geração.
Pare um instante e observe sua família: quantos padrões de comportamento se repetem? Quantas sequências de fracassos, quantas sequências de dores?
Por que isso acontece?
Na psicologia cognitiva, Beck descreveu os schemata: estruturas (esquemas mentais) de pensamento que moldam a forma como interpretamos o mundo (Beck, 1979). Quando são ativados, não sofremos só pelo presente, sofremos por tudo o que aquela situação reviveu em nós. Do ponto de vista clínico, isso significa que o evento atual funciona como gatilho de memórias antigas, reativando feridas emocionais que nunca foram elaboradas de forma saudável.
A neurociência já mostra que as experiências marcantes ficam registradas na amígdala (centro de detecção de ameaças) e no hipocampo (responsável por organizar memórias e associá-las ao contexto em que aconteceram), prontos para serem reativados quando algo no presente lembra, mesmo que de forma sutil, um evento passado (LeDoux, 1996). E aqui entra um ponto importante: ao repetir várias vezes a mesma queixa, você fortalece um circuito neural. Em termos simples, isso é uma rede de neurônios interligados que se comunicam entre si por sinais elétricos e químicos (sinapses), responsáveis por desempenhar funções específicas no cérebro. Essa repetição automática sustenta a manutenção do sofrimento, porque ativa sempre os mesmos esquemas cognitivos.
Mas a boa notícia é que esse processo também pode ser virado a seu favor. Quando você repete pensamentos e narrativas mais coerentes com quem é, estimula a neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do cérebro de criar e fortalecer novos circuitos. Nesse ponto, a repetição deixa de ser manutenção do padrão antigo e passa a ser construção de um padrão novo.
É bastante coisa para assimilar, eu sei. E é justamente por isso que a terapia faz diferença: porque nela você aprende a entender como funciona, reconhece os padrões que se repetem e, o mais importante, descobre como pode mudá-los.
Como podemos lidar?
O primeiro passo é reconhecer que a dor desproporcional que você sente não é fraqueza. Acredite: esse reconhecimento já abre espaço para a mudança. Agora, quando falamos em processo terapêutico, mais precisamente na abordagem Cognitivo-Comportamental, questionamos crenças centrais que distorcem a percepção (Beck, 1979). A Terapia do Esquema, por sua vez, ajuda a acessar memórias precoces e a atender necessidades emocionais que ficaram em aberto (Young, Klosko & Weishaar, 2003).
Do lado neurocognitivo, práticas como mindfulness e técnicas de regulação emocional fortalecem o córtex pré-frontal e reduzem a hiperatividade da amígdala, modulando reações intensas (Davidson & McEwen, 2012). E não dá para esquecer: cultivar a autocompaixão (talvez essa seja a palavra que mais repeti neste ano, não somente nos meus processos, mas também no espaço clínico) é essencial para quebrar o ciclo da autocrítica e abrir espaço para uma relação mais gentil consigo mesmo.
O cérebro, como agora você sabe, é “plástico”: assim como foi moldado por experiências de dor, pode ser remodelado por experiências de cuidado. Cada vez que você escolhe enfrentar a ferida com consciência, questionar a crença que a sustenta e cultivar um gesto de presença no agora, enfraquece os circuitos antigos e abre espaço para respostas mais saudáveis.
Lembre-se: a saída não está em apagar o passado, mas em aprender a conviver com ele de outra forma. Afinal, deixar que o presente seja tão afetado por histórias que já aconteceram – e que nem estão mais aqui – não é uma forma tão inteligente de viver, né!? Na prática eu até diria que essa é uma maneira bastante violenta de se tratar…
Conclusão
Quanto mais você sofre com algo ou alguém, mais certeza pode ter de que a dor não começou ali. Portanto, bora ressignificar: abrir espaço para viver o presente, parar de repetir velhos padrões e experimentar novos caminhos, pois você não está condenado a repetir indefinidamente as mesmas dores. Só permanecerá preso nelas se escolher não se movimentar.
Acredite: é possível transformar sofrimento em oportunidade para se tornar cada vez mais livre e mais útil, não somente para si, mas para o mundo.
Referências
BECK, A. T. Cognitive therapy and the emotional disorders. New York: New American Library, 1979.
YOUNG, J. E.; KLOSKO, J. S.; WEISHAAR, M. E. Schema therapy: A practitioner’s guide. New York: Guilford Press, 2003.
LEDOUX, J. E. The emotional brain: The mysterious underpinnings of emotional life. New York: Simon & Schuster, 1996.
DAVIDSON, R. J.; McEWEN, B. S. Social influences on neuroplasticity: Stress and interventions to promote well-being. Nature Neuroscience, v. 15, n. 5, p. 689–695, 2012.
RANGÉ, B. P. Terapias cognitivo-comportamentais: Um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FALCONE, E. M. O.; NASCIMENTO, E. Terapia cognitivo-comportamental: Teoria e prática. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 8, n. 2, p. 45-56, 2012.


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