BEATRIZ UQ


É BOM PARA O OUTRO, MAS É BOM PARA MIM?

Há uma linha fina entre generosidade e autoabandono – é, já começamos assim, pois minha intenção genuína aqui é fazer com que reflita sobre como pode estar se traindo sem perceber. O ponto é que às vezes atravessamos essa linha, acreditando que algumas atitudes nossas nos salvariam de ser deixados para trás. Fazemos pelo outro, cedemos pelo outro, sustentamos pelo outro. E, de repente, quando olhamos para dentro, já não sabemos se aquilo que fazemos ou oferecemos é uma escolha consciente ou se são nossos medos falando mais alto e roteirizando nossa vida por nós.

Vale a pena perguntar: o que sobra de você quando tudo é sobre o outro? É bonito pensar no cuidado… mas eu te pergunto: quando foi a última vez que você parou para checar se esse movimento também te incluía? Porque se não há reciprocidade interna – se não é bom para você também – o que sobra é desgaste. E aqui começa a reflexão: será que por trás de todas as suas queixas existe uma confusão entre amor e autoabandono?

Por que isso acontece?

Desde cedo aprendemos a valorizar comportamentos de cuidado e doação. Mas o problema surge quando o gesto de se entregar ao outro não vem acompanhado de um movimento de cuidar de si. Do ponto de vista neurocientífico, o cérebro associa aceitação à sobrevivência. A amígdala, que reage a ameaças, não diferencia rejeição social de risco físico (LeDoux, 1996). Já o hipocampo registra memórias de situações passadas em que a aprovação dos outros foi necessária para nos sentirmos aceitos (Kandel, 2001). A repetição desses contextos cria circuitos neurais de manutenção: quanto mais cedo e mais vezes você aprendeu a ceder, mais o seu cérebro “programa” que essa é a única forma de manter vínculos e, consequentemente, sentir-se seguro (Davidson & McEwen, 2012).

Impactos

Quando vivemos nessa lógica de nos doar sem medida, os impactos vão muito além de um simples cansaço. A mente passa a se organizar em torno da ideia de que o próprio valor depende da aprovação do outro (Beck, 1979; Beck, 2013; Rangé, 2001; Falcone & Nascimento, 2012), e isso corrói lentamente a autoestima. Aos poucos, a ansiedade se instala, acompanhada da culpa por não conseguir dizer “não” e da raiva contida por nunca ser visto em sua totalidade. Aqui vale lembrar: identificar as diferentes emoções envolvidas é essencial, pois só assim conseguimos nos conduzir de forma mais consciente a longo prazo. O corpo também responde: surge o esgotamento físico, que é apenas a face mais visível de um desgaste acumulado ao longo dos anos. Mas penso que talvez o mais duro seja aquela sensação de vazio que aparece quando você percebe que se acostumou a estar presente para os outros, mas ausente de si mesmo.

Como podemos lidar?

A Terapia Cognitivo-Comportamental propõe trabalhar crenças centrais que ligam valor pessoal à aprovação externa (Beck, 1979; Beck, 2013; Rangé, 2001). Questionar o pensamento automático do tipo “preciso agradar para ser aceito” – uma distorção geralmente sustentada por crenças centrais de desvalor ou inadequação – é uma estratégia essencial para flexibilizar padrões (Falcone & Nascimento, 2012). Do ponto de vista neurocognitivo, práticas de mindfulness (e espero que você já tenha começado) e técnicas de regulação emocional fortalecem o córtex pré-frontal – área do cérebro ligada ao raciocínio e à tomada de decisão – reduzindo a hiperatividade da amígdala e permitindo escolhas mais conscientes (Gross, 1998; Davidson & McEwen, 2012).

Na prática, isso significa começar por pequenas mudanças: experimentar dizer “não” em situações de menor risco, registrar pensamentos automáticos em um diário e testá-los, treinar respostas assertivas. A repetição dessas experiências cria novos circuitos neurais, sustentando a aprendizagem (Kandel, 2001).

E não se esqueça: autocompaixão é um ótimo recurso. Tratar-se como trataria um amigo querido quando falha é o que impede que o ciclo da autocrítica alimente novamente a submissão (Neff, 2003; Damásio & Koller, 2015). Aqui eu puxo seu pé de novo: de que adianta cuidar do outro se no processo você desaparece?

Afinal, o que vale uma relação em que só um lado permanece inteiro? Doar-se é bonito, mas só até o ponto em que não custa a tua própria essência. Então, se pergunta com sinceridade: é bom para o outro, mas… é bom para mim? No fim das contas, se o gesto não te inclui, acredite, mais cedo ou mais tarde você vai se perceber num beco sem saída.

Referências

BECK, A. T. Cognitive therapy of depression. New York: Guilford Press, 1979.

BECK, J. S. Terapia cognitivo-comportamental: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed, 2013.

DAVIDSON, R. J.; McEWEN, B. S. Social influences on neuroplasticity: Stress and interventions to promote well-being. Nature Neuroscience, v. 15, n. 5, p. 689–695, 2012.

FALCONE, E. M. O.; NASCIMENTO, E. Terapia cognitivo-comportamental: Teoria e prática. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 8, n. 2, p. 45–56, 2012.

LEDOUX, J. E. The emotional brain: The mysterious underpinnings of emotional life. New York: Simon & Schuster, 1996.

NEFF, K. D. Self-compassion: An alternative conceptualization of a healthy attitude toward oneself. Self and Identity, v. 2, n. 2, p. 85–101, 2003.

RANGÉ, B. P. Terapias cognitivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 2001.


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BEATRIZ UQ.

Tenho 30 anos (aquariana), nasci em Brasília, mas foi em Fortaleza que decidi recomeçar minha vida depois de tantas mudanças. Sou psicóloga clínica e encontrei na escrita o meu jeito de respirar e me organizar internamente.

Aqui compartilho reflexões, poemas e fragmentos que atravessam temas como amor, solidão, deslocamento e pertencimento. Escrevo porque acredito que quando damos clareza ao que sentimos, deixamos de ser reféns de nós mesmos.


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